O Conceito de Trabalho
Nas ciências humanas, a principal ferramenta de trabalho é o conceito. Uma palavra pode carregar consigo diversos sentidos e significados. Quando se constrói um conceito dentro de uma área de conhecimento delimitam-se os sentidos e significados atribuídos àquela palavra, passando a ser tratada como um conceito (específico). A importância de se delimitar os sentidos e significados de uma palavra na forma de um conceito está em garantir àqueles que o utilizarem que tenham clareza do que se fala.
Portanto, para entender o que o trabalho representa na sociedade e para os indivíduos é fundamental que entendemos, ou melhor, tenhamos clareza sobre o que queremos dizer com o conceito de trabalho. Trata-se de nos instrumentalizarmos com um conceito fundamental para a compreensão das relações humanas no trabalho. Nesta unidade, buscaremos compreender as diferentes dimensões do trabalho, econômica, social e psicológica, a fim de adquirir uma visão mais abrangente das relações de trabalho.
Para você, o que é o trabalho?
Podemos associar a palavra trabalho com algumas imagens como a de alguém arando a terra, uma mulher em trabalho de parto, um operário numa linha de produção, ou um artista em frente a sua tela. Estas são algumas das diferentes formas de se entender o que é trabalho. Para fazer essa diferenciação, primeiramente, recorreremos às palavras gregas labor, práxis e poiesis, de acordo com o sentido trabalhado por Albornoz no livro “O que é trabalho”.
Uma noção de trabalho a partir da tradição grega na ideia de labor está relacionada às atividades que se conformavam aos ritmos da natureza. Não se entendia a ação humana como uma força controladora dos processos naturais, o trabalho tinha um sentido de adequação aos processos naturais. Essa compreensão do trabalho estava fundamentada no conjunto de crenças que regia a sociedade grega de então. Os fenômenos naturais eram entendidos como manifestações dos desejos divinos, portanto, o trabalho com a natureza caracterizava-se por um pacto, uma adequação entre o desejo divino (a natureza e suas manifestações) e a ação do homem. Não há a ideia de transformação ou imposição da vontade ou desejo humano. De acordo com Albornoz, Labor é:
(...) aquele trabalho do corpo do homem pela sobrevivência. O modelo é o do camponês sobre o arado, no trabalho da terra. Ou o da mulher no parto. Há uma dose de passividade nessa atividade humana: a submissão aos ritmos da natureza, às estações, à intempérie. Às forças incontroláveis biológicas, os hormônios, a musculatura autônoma (ALBORNOZ, 1986 p.47).
Outra noção de trabalho era expressa por práxis. A práxis fazia referência a uma ideia de trabalho livre. Em contraposição ao labor, que obedece aos ritmos da natureza, a práxis envolve-se com a ação livre de um usuário. As ações relacionadas à ideia de práxis não envolvem uma dimensão de produção, como veremos mais adiante que está relacionada com a ideia de poiesis. Segundo a autora, práxis refere-se:
(...) à ação propriamente dita, é à atividade não produtora, em que o ato reside no interior do próprio sujeito agente. Nos preconceitos do mundo grego, a práxis prevalece como tipo e nível de atividade, sobre a poiesis, a operação da fabricação, a atividade do artífice, onde o ato se realiza num objeto produzido. O homem ali só age realmente, e livremente, quando utiliza as coisas, e não quando as fabrica. O ideal do homem livre, do homem ativo, aparece na Grécia como sendo antes o do usuário que o do produtor. O problema da ação é o do bom uso das coisas, e não de sua transformação pelo trabalho (ALBORNOZ, 1986, p.46-47).
O conceito de trabalho tratado como práxis, com a noção de uso livre das ações, abre a possibilidade da reflexão sobre que usos são melhores e mais adequados. Trata-se da discussão sobre os bons usos das coisas que menciona a autora. O trabalho relacionado à dimensão de práxis permite a discussão sobre o sentido e as consequências do que é feito pelo homem. Se a dimensão da ideia de labor, a ação do homem é subjugada, na práxis é livre, ao ponto de ser alvo de reflexão sobre seu sentido e suas consequências. A práxis pode ser objeto de julgamento moral pelo sujeito que age e a comunidade a qual pertence. Por último, a autora utiliza a palavra grega poiesis para referir-se ao trabalho, em suas palavras:
O trabalho propriamente dito, aquele que traduz a palavra grega poiesis, o fazer, a fabricação, criação de um produto pela arte, é a obra da mão humana que maneja instrumentos que a imitam. Este fazer humano tem a qualidade da permanência; deve poder superar no tempo o próprio trabalhador (ALBORNOZ, 1986, p.48).
Enquanto no labor, a ação do homem submete-se aos ritmos da natureza, e a práxis liberta-se pela ação livre de um usuário sobre os objetos do mundo, a ideia de poiesis refere-se à ação transformadora e criadora. Essa percepção do trabalho para os gregos era aplicada às manifestações artísticas, à obra de um escultor, para a autora é o modelo perfeito. A ação criadora do escultor não se submete à natureza, mas a modifica. Diferente da práxis, o trabalho no sentido de poiesis não se restringe a uma ação de usuário, além de transformar a natureza, a ação é orientada para a construção antes que o uso mesmo do objeto construído.
Para além da tradição grega, o trabalho também recebeu outros sentidos como o de castigo. Segundo a autora:
Na tradição judaica o trabalho também é encarado como uma labuta penosa, à qual o homem está condenado pelo pecado. A Bíblia o apresenta como castigo, um meio de expiação do pecado original. Por haverem perdido a inocência original do paraíso, Adão é condenado a ganhar o seu pão com o suor de seu rosto, assim como Eva é condenada às dores do parto (ALBORNOZ, 1986, p.51).
Essa visão permanece nas crenças e costumes de muitos povos. No Brasil, país com grande participação da religião cristão, a visão do trabalho como algo penoso, doloroso ou castigo pode ser percebida em diferentes grupos sociais, na família, amigos, mídia e instituições. Com a reforma protestante modificou-se um pouco essa visão sobre o trabalho. Não se excluiu a ideia de castigo, mas a ela foi associada um ideia de obrigação e dever para com a divindade. O trabalho é um castigo divino, mas também um dever aos fiéis para o caminho da expiação dos pecados e da redenção.
Essas noções atribuídas ao conceito de trabalho (labor, práxis e poiesis nos gregos; e, castigo e obrigação na tradição judaico-cristã) podem ser utilizadas para se pensar nossas ações cotidianas. Com o auxílio delas podemos refletir nossas ações de trabalho, refletem-se uma submissão aos ritmos da natureza, ou ao uso livre dos objetos do mundo, ou sua transformação. Muitas vezes perceberemos que nossas ações reúnem as três formas refletidas pelos gregos. O nosso trabalho, na contemporaneidade, mescla a adequação à natureza, seu uso e sua transformação. Podemos e devemos, também, refletir sobre a validade dos atos praticados, julgando-os no plano moral. Será que o que realizamos como trabalho está dentro do que entendemos como um bom uso das nossas ações? Seja a submissão ou a transformação, não poderiam, também, ser repensados a partir de padrões morais, o sentido da ação e suas consequências? Estamos condenados a trabalhar, como castigo ou como dever? Essas são algumas questões que podemos relacionar ao conceito de trabalho.
Fonte: ALBORNOZ, Zuzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.43 até 78.