Unidade A – Toxicocinética

Biotransformação

A biotransformação é a etapa mais importante no processo de eliminação e diminuição da toxicidade. Entretanto, ela também é responsável pelo surgimento de metabólitos reativos intermediários, que se ligam às macromoléculas do organismo, produzindo efeitos tóxicos pós-biotransformação, diferentes dos efeitos do agente xenobiótico inicial.

Dependendo da estrutura e do tipo de ligação, diferentes efeitos patológicos poderão ocorrer como necrose, fibrose, formação de imunógenos, mutagênese, carcinogênese e teratogênese.

Diariamente estamos expostos a substâncias estranhas ao nosso organismo (xenobióticos), que podem ser absorvidas, intencionalmente ou não, através da pele, vias respiratórias, ingestão, de alimentos e água ou medicamentos.

A biotransformação pode ser então, compreendida como um conjunto de alterações químicas (ou estruturais) que as substâncias sofrem no organismo, geralmente, ocasionadas por processos enzimáticos, com o objetivo de formar derivados mais polares e mais hidrossolúveis, e, portanto, facilita sua eliminação. Contudo, nem sempre as drogas são inativadas, pelo contrário, alguns metabólitos apresentam atividade aumentada.

Sítios de biotransformação

A biotransformação pode ocorrer em qualquer órgão ou tecido orgânico como, por exemplo, no intestino, rins, pulmões, pele, testículos, placenta, etc. No entanto, a grande maioria das substâncias, sejam elas endógenas ou exógenas são biotransformadas no fígado.

O fígado é o maior órgão do corpo humano com diversas e vitais funções, destacando-se entre elas, as transformações de xenobióticos e nutrientes. Por ser o sítio primário para a biotransformação, o fígado é potencialmente vulnerável à ação tóxica de um xenobiótico que sofre bioativação. A biotransformação é efetuada, geralmente por enzimas, principalmente, aquelas existentes nos chamados microssomas hepáticos (pequenas vesículas presentes no retículo endoplasmático) e na fração solúvel do citoplasma (citosol). As mitocôndrias, núcleos e lisossomas possuem menor capacidade de biotransformação. Assim, as reações de biotransformação são referidas, frequentemente, como microssômicas ou citosólicas, de acordo com as localizações subcelulares das enzimas envolvidas.

Mecanismos de biotransformação

  1. A biotransformação pode ocorrer através de dois mecanismos:
    1. mecanismo de ativação ou bioativação - que produz metabólitos com atividade igual ou maior do que o precursor. Ex.: a piridina é biotransformada no íon N-metil piridínico que tem toxicidade cinco vezes maior que o precursor. O mesmo ocorre com o inseticida paration que é biotransformado em paraoxon, composto responsável pela ação tóxica do praguicida;
    2. mecanismo de desativação - quando o produto resultante é menos tóxico que o precursor.

Segundo Watkins (1992), citado por Yoko Oshima-Franco, as enzimas são as responsáveis pelas reações de biotransformação e encontram-se presentes em todo o organismo (sangue, rins, pulmões, pele, tecido nervoso, intestino delgado e fígado). Embora elas estejam distribuídas em todo o organismo, o fígado é, sem dúvida, o órgão que mais as concentra. Testes bioquímicos realizados com o tecido hepático por centrifugações sucessivas constataram a presença de enzimas nas diferentes frações: deidrogenases, esterases, amidases, e transferases (na fração solúvel);  monoamino oxidases (em nível mitocondrial) e citocromos P450 (microssomal).

A fração hepática microssômica corresponde aos fragmentos dos retículos endoplasmáticos centrifugados. As enzimas localizam-se predominantemente na superfície do retículo endoplasmático liso e constituem o sistema oxidase de função mista ou monoxigenases ou sistema citocromo P450 (BENET & SHEINER, 1987).

Ele possui importantes funções metabólicas, além de ser o sistema de sentinela que primeiro apreende e inativa vários xenobióticos no organismo. Para uma droga ser metabolizada pelos microssomas, é necessário ser lipossolúvel, pois essa propriedade facilita a penetração dela no retículo endoplasmático e a sua ligação ao citocromo P450. Os componentes do sistema P450 são:

  1. citocromo P450: componente primordial do enzimático oxidativo. Essa enzima apresenta um núcleo pirrólico com o átomo de ferro à semelhança da hemoglobina, sendo considerada uma hemoproteína;
  2. NADPH-citocromo P450 redutase ou NADPH-citocromo C redutase: enzima intermediária, flavoproteína e outro grupo enzimático, NADH-citocromo b5 redutase, acompanha o citocromo P450 e funciona como alternativa na transferência de elétrons, da fonte para o citocromo P450. Essas enzimas necessitam de um agente redutor: a nicotinamida adenina dinucleotídio fosfato (NADPH), e do oxigênio molecular.

Fases da biotransformação

As reações de biotransformação são categorizadas, não somente pela natureza da reação envolvida (oxidação, redução, etc.), mas também pela sequência normal com que elas ocorrem. Essas reações catalizadas pelas enzimas biotransformadoras de xenobióticos são classificadas em reações de fase I (ou pré-sintéticas) e reações de fase II (sintéticas ou de conjugação).

A fase 1, compreende um conjunto de reações de oxidação, redução e hidrólise que preparam os toxicantes para as reações da fase II. Essas reações, geralmente, modificam a estrutura química da substância mediante adição de um grupo funcional (-OH, -NH2, -SH, ou -COOH), o que resulta em um pequeno aumento de hidrofilicidade.

As reações da fase 2, também chamadas de reações de conjugação, incluem: glicuronidação, sulfonação (mais conhecida como sulfatação), acetilação, metilação, conjugação com glutationa e conjugação com aminoácidos.  Os substratos endógenos dessas reações interagem com grupos funcionais presentes na molécula do xenobiótico ou que foram introduzidos ou expostos durante a fase I. Na maioria das reações de conjugação formam-se compostos altamente polarizados e hidrossolúveis que são prontamente excretados pelos rins.

Reações de fase I

a) Oxidação

A oxidação é uma reação química na qual o substrato perde elétrons. A reação por adição de oxigênio foi a primeira a ser descoberta e, por essa razão, recebeu essa denominação. Como exemplo de reações por adição de oxigênio destacam-se a hidroxilação, epoxidação e sulfoxidação. Entretanto, muitas reações de oxidação não envolvem oxigênio. A mais simples delas é a desidrogenação que consiste na remoção de hidrogênio da molécula. A maioria dessas reações é evidenciada pelo nome da reação ou enzima envolvida. Por exemplo: desidrogenação alcoólica, hidroxilação aromática, desaminação, desalquilação, dessulfuração, entre outras.

O principal sistema enzimático responsável pela oxidação de xenobióticos é o Citocromo P450, hemoproteína, com o átomo de ferro em seu núcleo, esta ao se reduzir se liga ao oxigênio e ao toxicante, promovendo de fato a oxidação do composto.

b) Redução

Essa é uma reação química através da qual o substrato ganha elétrons. São catalisadas por redutases microssômicas e citosólicas e pelas bactérias intestinais. As reações de redução podem ocorrer através da formação de duplas ligações nitrogênio-nitrogênio (azo-redução) em grupos nitro (NO2). Nesses casos, os compostos amino formados são oxidados e formam metabólitos tóxicos. Assim, as reações de redução, frequentemente resultam na ativação do xenobiótico em vez de destoxificação.

A natureza dessas reações também é evidenciada pela sua denominação, como por exemplo, azo-redução, desalogenação redutora, redução de carbonila entre outras. A redução pode ser efetuada enzimaticamente, envolvendo enzimas microssômicas ou não.

c) Hidrólise

É uma reação na qual a adição de uma molécula de água separa o toxicante em dois fragmentos ou moléculas menores. O grupo hidroxila (-OH) é incorporado em um fragmento e o hidrogênio no outro. Certos xenobióticos são lisados antes de sofrerem outras reações de biotransformação. A mais comum destas reações é a hidrólise de ésteres, embora amidas, nitrilas e hidrazidas, também possam ser hidrolizadas. A hidrólise de ésteres (R-COOR) é feita pelas enzimas denominadas esterases, que podem ser de origem microssômica ou não. Geralmente essas esterases não possuem uma boa especificidade, ou seja, uma esterase pode, além de hidrolisar ésteres, provocar a quebra de acetanilidas, amidas e outros derivados da anilina.

Reações de fase II

Um fator importante na toxicidade de um xenobiótico é a sua capacidade de ser excretado, e parece que os rins dos vertebrados são constituídos de maneira e excretar eletrólitos mais facilmente que não eletrólitos. Assim, quanto mais ionizado estiver um ácido orgânico no pH do meio, mais rapidamente ele será excretado pelos rins. A ionização, por sua vez, depende do chamado momento dipolo (ou grau de polaridade), ou seja, da distância entre o centro geométrico de todas as cargas positivas e de todas as cargas negativas. É claro que moléculas com momento dipolo baixo (carga positiva perto da carga negativa) terão uma simetria maior e, portanto, uma ionização mais difícil. Já moléculas com grandes dipolos (ou seja, moléculas onde as cargas positivas e negativas estão distantes) terão uma menor simetria e, consequentemente, maior ionização.

Nas reações de conjugação os xenobióticos ligam-se a substratos endógenos do organismo, formando metabólicos de maior tamanho molecular, mais excretáveis e menos tóxicos. Ou seja, observa-se: aumento do tamanho, maior polaridade, maior ionização, maior excreção e menor toxicidade. Os principais compostos endógenos envolvidos nas reações de conjugação são:

  1. Aminoácidos e seus derivados, tais como a glicina e cisteína.
  2. Carboidratos e seus derivados, especialmente o ácido glicurônico.
  3. Conjugação com compostos simples como, por exemplo, sulfato e acetato.

a) Conjugação com o ácido Glicurônico

Esse ácido é formado durante o metabolismo da glicose e sua forma ativa, (ácido uridino difosfato glicurônico (UDPGA)) é formado enzimaticamente na fração solúvel do fígado. A forma ativa doa o ácido glicurônico para se conjugar com o xenobiótico. Os conjugados glicurônicos ou glicuronídios são muito polares e, portanto, facilmente excretados do organismo.

b) Conjugação com Sulfato

Este tipo de conjugação é quase tão comum quanto à anterior. Os produtos da conjugação com sulfatos são sais de sulfatos ácidos (SO3) ou de sulfamatos (NHSO3), que, em pH fisiológico são totalmente ionizados e rapidamente excretados pelos rins. Os íons sulfatos presentes no organismo também terão que ser ativados para se conjugarem com os xenobióticos.

c) Conjugação com Aminoácidos

A reação consiste na formação de uma ligação peptídica entre o grupo amino de um aminoácido, geralmente, a glicina, e o grupo carbonila do xenobiótico. Para que essa reação ocorra, é indispensável que o toxicante possua um grupo carboxila. Os compostos formados são excretados na urina porque o sistema de transporte do rim reconhece o aminoácido.

d) Conjugação com a Glutationa

A glutationa é um tripeptídio (ácido glutâmico-glicina-cisteína). O conjugado formado se rompe nos rins produzindo o Cis-derivado, que se acetila para produzir um conjugado do ácido mercaptúrico que é excretado pela urina. Essa reação é importante na destoxificação de epóxidos e peróxidos. A glutationa-S-transferase encontra-se em células de muitos tecidos do organismo. Se essa reação diminui significativamente os níveis celulares de glutationa, o organismo pode sofrer danos consideráveis devido à peroxidação lipídica ou por outros tipos de agressão química.

e) Metilação

A metilação é uma reação importante na transformação de compostos endógenos e participa da biossíntese de vários aminoácidos e esteróides, assim com na metilação do DNA. Enquanto as reações de fase I ativam grupos funcionais, a metilação os mascara, impedindo que participem das reações de fase II e, portanto, se o xenobiótico é metilado, sua taxa de eliminação diminui.

Fatores que modificam a biotransformação

Para que ocorram de forma eficiente, os processos de biotransformação dependem de vários fatores como: dose e frequência de exposição, espécie, idade, gênero, variabilidade genética, estado nutricional, estado patológico e a exposição a outros agentes que podem inibir ou induzir as enzimas biotransformadoras de xenobióticos.

a) Dose e frequência de exposição:

A dose geralmente faz alterar o caminho da biotransformação. Certas enzimas possuem elevada afinidade, mas baixa capacidade para biotransformar substâncias exógenas. Por isso, serão rapidamente saturadas quando doses elevadas do agente tóxico são administradas e outras vias secundárias passam a ter um papel mais importante. Em relação à frequência, esta pode levar a uma sensibilização ou indução de receptores enzimáticos, aumentando a biotransformação.

b) Espécie:

As diferenças interespecíficas na capacidade de biotransformação de substâncias químicas são bem conhecidas e constituem, normalmente, a base da toxicidade seletiva, utilizada para o desenvolvimento dos testes de segurança de medicamentos realizados em animais.

A capacidade biotransformadora varia amplamente de um indivíduo para outro, em função de diferenças genéticas.

c) Gênero:

Para algumas substâncias, existem diferenças entre as respostas tóxicas em animais machos e fêmeas. Esse fato é explicado pela menor capacidade do fígado das fêmeas de biotransformar xenobióticos, tornando-as mais suscetíveis à ação da maioria dos agentes tóxicos

Acredita-se que as diferenças entre os gêneros sejam causadas pelos hormônios sexuais, tendo em vista que, ao se administrar testosterona às fêmeas, ocorre aumento na capacidade de biotransformação e com a castração de machos há uma diminuição dessa capacidade. A influência do sexo sobre a biotransformação também pode ser observada em processos que ocorrem em outros órgãos como, por exemplo, nos rins.

d) Idade:

Tanto animais jovens, quanto velhos, apresentam menor capacidade de biotransformar xenobióticos e, consequentemente, são mais suscetíveis aos seus efeitos tóxicos, estes últimos devido a diminuição do fluxo sanguíneo, e menor eficiência de excreção do sistema biliar e renal.

e) Dieta e estado nutricional:

As deficiências em vitaminas, especialmente, C, E e do complexo B, reduzem a velocidade de biotransformação. Além disso, suas deficiências podem alterar a energia e o estado redox das células, diminuindo a produção de cofatores necessários para a fase de conjugação. Dietas pobres em proteínas diminuem a síntese enzimática e, consequentemente, a biotransformação e, dessa forma, podem aumentar a toxicidade de substâncias ativas, mas, são capazes também de reduzir o potencial tóxico daqueles agentes que necessitam de biotransformação prévia para se tornarem ativos.

f) Estado patológico:

Muitas patologias podem alterar a capacidade individual de biotransformação de xenobióticos, em particular, as doenças hepáticas como cirrose, icterícia obstrutiva, carcinomas e hepatite, devido a uma redução drástica das atividades enzimáticas do fígado. Distúrbios cardiovasculares, que acarretam diminuição do fluxo sanguíneo, modificam igualmente a biotransformação e a depuração dos agentes tóxicos.

g) Inibição e indução enzimática:

O sistema enzimático é influenciado por uma série de substâncias, que podem induzir ou inibir a sua atividade, alterando a biotransformação de determinados compostos. A inibição enzimática envolve mecanismos diversos, desde a inibição da síntese proteica até a competição entre os substratos pelos centros ativos comuns das enzimas.

 

Clique aqui e assista a apresentação de slides - Aspectos gerais da toxicocinética.